Historiador Rashid Khalidi : Palestinos vivendo debaixo de opressão inacreditável: “tinha que explodir”
Em Nova York, conversamos com Rashid Khalidi, autor do livro The Hundred Years’ War on Palestine (A Guerra de Cem Anos contra a Palestina), que explica como a violência extrema deste fim de semana entre o Hamas e Israel forçará “uma mudança de paradigma”. As potências coloniais poderão seguir acreditando que podem forçar as pessoas a viver sob as condições a que Israel tem submetido os palestinos sem esperar nenhuma retaliação dos oprimidos, diz Khalidi. “Essa ideia implodiu como resultado dos terríveis acontecimentos dos últimos dois dias e meio”, diz Khalidi, que chama o bloqueio de Gaza de “uma panela de pressão. Ela tinha que explodir”. Em resposta à escalada do conflito, os EUA prometeram que Israel teria “o que precisa para se defender”, prometendo mais ajuda militar e munições para Israel, que já é o maior beneficiário anual do financiamento militar dos EUA, ao mesmo tempo em que o governo Biden deslocava navios de guerra em direção a Israel. “Nós financiamos essa ocupação. Financiamos essa violência”, diz Khalidi, que pede a Biden que desarme a situação em vez de agravá-la. “Não se pode fazer a paz sobre os corpos dos palestinos.”
Transcrição
Esta é uma transcrição realizada em urgência. O texto pode não estar em sua versão final.
AMY GOODMAN: Aqui é o programa Democracy Now!, democracynow.org, The War and Peace Report- Relatório de Guerra e Paz . Eu sou Amy Goodman.
Israel ordenou um cerco completo à Faixa de Gaza depois que os combatentes do Hamas furaram o bloqueio da Faixa de Gaza no sábado e realizou um ataque sem precedentes por ar, terra e mar contra Israel. Nos últimos três dias, pelo menos 1.300 pessoas morreram, incluindo mais de 800 dentro de Israel e mais de 500 em Gaza. Estivemos em Gaza e Jerusalém. Agora estamos aqui em Nova York com Rashid Khalidi, titular da Cátedra Edward Said de Estudos Árabes Modernos da Universidade de Columbia, autor de vários livros, incluindo The Hundred Years’ War on Palestine (A Guerra de 100 anos contra a Palestina.)
Professor Khalidi, obrigado por estar conosco. Ao ouvir as vozes de Orly Noy em Jerusalém, de Raji Sourani, advogado de direitos humanos em Gaza, o ataque que ouvimos ao vivo no ar, e Ofer Cassif, membro do Knesset de Israel, você pode responder ao que aconteceu e ao que parece que está prestes a acontecer? Equipamentos militares e tanques israelenses estão indo para Gaza agora.
RASHID KHALIDI: Temo que as terríveis baixas entre civis, israelenses e, cada vez mais, palestinos, sejam apenas o começo do que será um massacre terrível, terrível, terrível em Gaza. O desejo de vingança após a morte de um número muito grande – centenas, aparentemente – de civis israelenses inocentes levará a um massacre horrível em Gaza de provavelmente muito, muito mais pessoas do que podemos imaginar. E concordo com o que Raji disse, é claro, meu amigo Raji, que espero que esteja bem. E concordo com o que Orly disse e com o que Ofer Cassif disse. Crimes de guerra não justificam outros crimes de guerra. E estamos prestes a ver crimes de guerra horríveis.
Mas acho que há duas coisas que precisam ser acrescentadas. Isso precisa ser colocado dentro do contexto. E o contexto não é apenas a ocupação. O contexto é o colonialismo por ocupação e apartheid. A população de Gaza, os refugiados de Gaza, são originários das áreas que os combatentes do Hamas estavam atacando nos últimos dias. Essas eram cidades e vilarejos palestinos em 1948. A limpeza étnica da Palestina levou ao confinamento do que hoje são 2,4 milhões de pessoas em Gaza. Hoje é o Dia dos Povos Indígenas nos Estados Unidos. Esses são os povos indígenas das regiões do sul de Israel que os combatentes do Hamas estavam atacando nos últimos dias. Essa é a primeira coisa.
A segunda coisa é que acho que estamos prestes a ver uma mudança de paradigma. A ideia de que é possível reunir 5 milhões de pessoas, colocá-las atrás de muros, apertar o cerco, usar um conta-gotas para dar a elas um pouco de comida, água e eletricidade, essa ideia implodiu como resultado dos terríveis acontecimentos dos últimos dois dias e meio. Isso não pode continuar. Não se trata apenas de uma questão de ocupação. Temos de reconhecer que não se pode tratar um povo inteiro da maneira como Israel, não apenas sob esse governo neofascista, mas sob todos os seus governos anteriores, os tratou. Não se pode expulsar três quartos de um milhão de pessoas em 1948 e não esperar o retorno dos reprimidos. Não se pode cometer violência diária contra os palestinos – um palestino morreu por dia este ano – na verdade, um pouco mais – na Cisjordânia ocupada. Não se pode esperar que isso não leve a uma reação. A reação será violenta. A reação às vezes pode incluir coisas que são inquestionavelmente crimes de guerra.
Mas esse tipo de pressão exercida sobre um povo inteiro ao longo de três quartos de século trará necessariamente, inevitavelmente, uma reação violenta. E essa panela de pressão em que os palestinos se encontram, que o comandante militar do Hamas listou – ele disse o que estão fazendo em Jerusalém, tentando tomar a Mesquita de Al-Aqsa e transformá-la em um local de oração judaica, o que estão fazendo na Cisjordânia ocupada em termos da clara anexação de mais e mais terras palestinas a Israel, e a aplicação da lei israelense aos israelenses e da lei militar aos palestinos – apartheid, dois sistemas legais em um só lugar -, a prisão de 5.000 palestinos e a detenção administrativa de centenas e, por fim, o cerco a Gaza – quando Gallant, Yoav Gallant, o ministro da Defesa, anunciou que estava cortando o fornecimento de combustível, alimentos, água e eletricidade a Gaza, ele chamou os habitantes de Gaza de “animais humanos”. São 2,4 milhões de pessoas que estão sendo tratadas como se fossem animais. Eles não são combatentes do Hamas. Como disse Raji, os combatentes são uma coisa. O Hamas é uma coisa. O Hamas se impôs ao povo de Gaza. O povo de Gaza é quem vai sofrer. Como em todas essas guerras, quase todas as baixas serão de civis, que Israel tem travado em Gaza. Esse será o quinto ou sexto ataque a Gaza. E tenho muito, muito medo de que Raji esteja certo: veremos massacres sem precedentes. Mas acho que temos de ver que este pode ser o fim de uma era, quando as pessoas em Washington e as pessoas nas capitais árabes presumem que podem simplesmente sobrevoar a Palestina, ignorá-la e fingir que estamos em um novo Oriente Médio de paz, enquanto um povo inteiro está vivendo sob esse tipo de opressão incrível, em uma panela de pressão. Isso tinha que explodir.
AMY GOODMAN: E fale sobre o que está acontecendo agora. Os republicanos estão atacando Biden, dizendo que foi o apoio dele ao Irã, fazendo aquele acordo de US$ 6 bilhões, descongelando os ativos iranianos, que permitiu que isso acontecesse, o Wall Street Journal dizendo que o Irã está atrás de nós, a Casa Branca rebatendo, Blinken dizendo que não tem provas neste momento. O que isso significa? E também o Hezbollah na fronteira do Líbano e a incursão neste fim de semana?
RASHID KHALIDI: Bem, quero dizer, a possibilidade de um conflito mais amplo deveria aterrorizar a todos. E, em vez de deslocar porta-aviões, os Estados Unidos deveriam estar tentando neutralizar a situação. Em vez disso, acho que eles estão seguindo cegamente as políticas que adotaram no passado. Não se enviam presentes, como fez o presidente Biden, a um governo de apartheid que está caminhando para basicamente destruir as proteções da constituição israelense para os judeus israelenses e anexar a Cisjordânia. E é isso que este governo vem fazendo. Foi isso que as administrações anteriores fizeram. Nós financiamos essa ocupação. Financiamos essa violência. Há armas americanas que estão sendo usadas hoje, neste exato momento, em Gaza para matar civis inocentes, violando a lei dos EUA. E os políticos americanos falam alegremente como se vivessem em outro planeta.
Acho, porém, que houve uma mudança no cenário, e, embora os políticos americanos vivam na Terra do Nunca, no que diz respeito à Palestina, a realidade vai se impor mais cedo ou mais tarde. Há uma repulsa generalizada em todo o mundo árabe contra o que Israel faz na Palestina. Monarquias autoritárias, ditatoriais e absolutas estão tentando ignorar isso, ignorar os sentimentos de seu próprio povo, os sentimentos de seu próprio povo. Isso não vai funcionar. Não se pode fazer a paz sobre os corpos dos palestinos. Isso não é paz. Essa é a paz dos mortos. E o tipo de repressão que está sendo exercida dia após dia – roubo de terras, expansão de assentamentos e assim por diante – necessariamente, inevitavelmente, trará uma reação. Portanto, quer as pessoas que vivem em Washington, D.C., e em sua própria realidade alternativa acreditem nisso hoje ou amanhã, mais cedo ou mais tarde, acho que essa realidade vai aparecer. Mas não se pode fazer isso para sempre.
AMY GOODMAN: O assessor de segurança nacional, Jake Sullivan, disse há apenas 10 dias que a situação no Oriente Médio tem sido muito tranquila, o que permitiu que os EUA dirigir sua atenção para outras áreas do mundo. “Muito calmo”, disse ele. Gostaria de saber se você pode comentar sobre isso. E você acha que o que levou a esse ataque dos combatentes do Hamas no sábado teve algo a ver com o fato de a Arábia Saudita e Israel normalizarem suas relações a pedido dos Estados Unidos?
RASHID KHALIDI: Não tenho dúvidas de que isso foi um fator. Acho que o fator central foi o fato de as pessoas não conseguirem viver nessas circunstâncias. E o Hamas basicamente agiu de uma forma que envolveu uma enorme brutalidade contra os civis, coisas que são inquestionavelmente crimes de guerra. Mas ele agiu de forma a quebrar todo esse paradigma. Acho que as pessoas estão pensando com muito cuidado em lugares que se normalizaram [relações] com Israel.
A outra coisa que deve ser dita – acho que Orly mencionou isso – é que se trata de uma falha maciça de inteligência, por parte da inteligência americana e, especialmente, por parte dos serviços de inteligência israelenses. Eles não tinham a menor ideia de que isso estava prestes a acontecer. Eles transferiram três batalhões da frente de Gaza para a Cisjordânia para proteger os colonos israelenses cometendo ataques contra os palestinos, privando as cidades na fronteira sul da Faixa de Gaza dos soldados que poderiam tê-las defendido contra o ataque do Hamas. Essa foi uma das operações mais enganosas da história militar moderna, isso vai ser ensinado. Deixando de lado os crimes de guerra, isso será ensinado nas academias militares por anos e anos. Isso está no mesmo nível da guerra de 1973 em termos de engano e de um conceito totalmente equivocado por parte dos israelenses, que pensavam que era possível fazer isso com Gaza para sempre e que eles simplesmente se deitariam e aceitariam.
AMY GOODMAN: E, Rashid Khalidi –
RASHID KHALIDI: – achando que você pode fazer isso – desculpe, continue.
AMY GOODMAN: Esta notícia acaba de ser divulgada pelo Times of Israel e também pela Associated Press: A inteligência egípcia disse repetidamente a Israel que o Hamas estava planejando algo grande, mas os avisos foram ignorados, de acordo com um funcionário da inteligência no Cairo.
RASHID KHALIDI: Certo.
AMY GOODMAN: Sua opinião sobre isso, nos últimos 30 segundos?
RASHID KHALIDI: É muito semelhante ao que aconteceu antes da guerra de 1973, quando Israel estava recebendo informações de que os exércitos egípcio e sírio estavam planejando um grande ataque. E a ideia – a concepsia, em hebraico – de que essas pessoas nunca fariam tal coisa, que não são capazes disso, a arrogância que estava envolvida em ignorar esses relatórios de inteligência em 1973 e em 2023 estão entre as coisas que levaram a esse resultado catastrófico, que acho que vai mudar muitas coisas no Oriente Médio nos próximos meses e anos.
AMY GOODMAN: Rashid Khalidi, queremos agradecê-lo por estar conosco, Edward Said, Professor da Cátedra Edward Said de Estudos Árabes Modernos na Universidade de Columbia. Seu último livro, The Hundred Years’ War on Palestine (A Guerra de Cem Anos contra a Palestina). Raji Sourani, Centro Palestino de Direitos Humanos em Gaza, importante advogado de direitos humanos, falando conosco de Gaza quando as bombas explodiram. Ofer Cassif, membro do Knesset israelense. E Orly Noy, presidente do conselho da B’Tselem, organização israelense de direitos humanos. Por hoje é só. Eu sou Amy Goodman. Obrigada por nos acompanhar.
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