Veganismo e Agroecologia: Por que nos interessa apoiar a Agroecologia?
Por Luciana Rios – Integrante do do Coletivo Juá (alinhado à União Vegana de Ativismo)*
Essa é uma pergunta que pode parecer óbvia para algumas pessoas, mas não é bem assim. A indústria alimentícia, pautada no lucro, vem colocando o veganismo como nicho de mercado a partir do uso do termo “plant based” e o problema é que muitas dessas empresas são as mesmas que lucram com a exploração da vida, com a padronização alimentar, com o declínio da saúde da população com seus produtos ultraprocessados, desassociando o veganismo de todo o seu propósito político.
Para além de uma dieta estritamente à base de vegetais, o veganismo é um movimento ético e político que traz em sua essência a luta anticapitalista, antirracista, antipatriarcal. Não precisa analisar muito para perceber que por trás da exploração animal, há um “trator” de interesses políticos e financeiros explorando a terra, a mão de obra do trabalhador, o corpo das mulheres nos moldes do colonialismo. Por isso, o veganismo precisa conectar a luta pela libertação animal com as demais lutas anti opressão e a favor da vida. Precisa considerar a luta pela soberania alimentar, pela democratização do alimento saudável, pela comida de verdade, especialmente num país que tem atualmente 33% de sua população passando fome, de acordo com dados do II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil.
O Brasil é um país que saiu do Mapa da Fome, em 2014, graças à políticas públicas como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que também apoiavam a agricultura familiar camponesa. Esse cenário mudou e, hoje, o alimento não é tratado como direito, mas como mercadoria. O país retirou os investimentos para a agricultura familiar, que é quem produz comida de verdade para a população, e intensificou ainda mais o apoio ao agronegócio e aos produtores de agrotóxicos e de sementes transgênicas, que produzem as commodities para exportação ou para a pecuária, deixando rastros de destruição e potencializando a crise climática.
A ativista Sandra Guimarães, representante da União Vegana de Ativismo (UVA), resumiu perfeita e objetivamente: “Quando a carne é a protagonista no prato, os ruralistas são protagonistas no campo. Quando a alimentação tem como protagonistas vegetais frescos, a agricultura familiar é colocada no centro”. Só que a agricultura familiar e camponesa precisa de terra para produzir alimentos. Terras essas que estão nas mãos dos latifundiáŕios e pecuaristas há séculos.
É aí que entra a defesa da Agroecologia, que levanta pautas que nos desafiam a refletir sobre essas estruturas impostas pelo capitalismo e a pensar em descolonização e enfrentamento ao agronegócio, pontos explicitados na atual Carta Política da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), produzida à muitas mãos para servir de instrumento de incidência política nas eleições deste ano.
O documento está organizado em cinco eixos estruturantes e resultam de convergências políticas, aprendizados e desafios consolidados na construção da agroecologia em todo o país. O primeiro deles é a questão agrária e urbana, que nunca foi resolvida. Não é possível falar em soberania alimentar sem democratizar o acesso à terra e assegurar os direitos dos povos originários e camponeses. O segundo ponto é o enfrentamento da fome e promoção da soberania alimentar, em conjunto com políticas públicas de produção, fomento, financiamento e distribuição. O terceiro é o campo da ciência, da tecnologia e da democratização da comunicação e da cultura. Outro ponto trata das relações entre sociedade e Estado, a participação democrática e controle social. E o último ponto traz a igualdade de gênero, raça e superação do colonialismo porque não há comida saudável se ela vem às custas de exploração e violência.
Esses eixos da carta política deixam evidentes as similaridades entre as pautas da agroecologia e do veganismo. De acordo com a pesquisadora e professora da Faculdade de Nutrição/FANUT da Universidade Federal de Alagoas/UFAL, Islândia Bezerra, que também é a atual presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA), o veganismo dialoga com outras dimensões da vida em sociedade e com a natureza. “Levando em consideração que a agroecologia é ciência, prática, movimento e espiritualidade – autoras indígenas têm trazido essa concepção da espiritualidade-, o veganismo converge com a agroecologia nessas dimensões do ser, do existir e do estar. Do mesmo jeito que o veganismo não é só uma dieta, a agroecologia não é só manejo de sistemas produtivos. A agroecologia não comporta uma série de outras questões como a violência, a opressão, o desrespeito, expropriações, assim como o veganismo também”, explica.
A professora destaca que é fácil perceber o quanto a agroecologia e o veganismo se encontram enquanto movimento, prática, construção do conhecimento. “Quando se está nos espaços com companheiras veganas e agroecológicas, o diálogo flui, gera reflexão, mas não necessariamente gera uma ação…e por que não gera ação? Estamos nessa engrenagem capitalista que coloca a comida num lugar de mercadoria. A mudança de pensamento não é fácil. Não se pode, por exemplo, vangloriar uma comida que é vegana, mas é um ultraprocessado que destruiu a floresta. É preciso fazer essas conexões”, afirma.
Islândia ressalta ainda que em nenhum momento as indústrias de produtos comestíveis são corresponsabilizadas pelo que produzem. “Nem os estados nações, nem a sociedade em si, nem as agências internacionais que andam de mãos dadas com o agronegócio, com a indústria de ultraprocessados e com a farmacêutica… Produzem veneno e antídoto e em nenhum momento, essas grandes corporações são responsabilizadas pelo que produzem e pelo que vendem.. Isso é o sistema capitalista”, ressalta.
Nessa engrenagem do modelo capitalista, o patriarcado é imperativo e coloca a mulher no lugar de propriedade. Essa é mais uma bandeira para ambos os movimentos. Islândia lembra como a autora Carol J. Adams, em seu conhecido livro A Política Sexual da Carne, se coloca como agente de luta e como a cozinha acaba sendo um espaço opressor que aprisiona a mulher nesse lugar. E, do mesmo modo que o patriarcado aprisiona e controla os corpos das mulheres, são animais fêmeas que passam a ter seus corpos e úteros explorados para seguir dando lucro a esse mesmo sistema. “Para muitas mulheres feministas, voltar para a cozinha segue sendo um lugar de opressão. Por isso, a agroecologia vem pautando com o movimento das mulheres feministas agroecológicas a divisão do trabalho doméstico. Nem é o feminismo em si que tem despertado esse debate, nem a agroecologia sozinha, mas os dois movimentos, as duas práticas. Essa relação, a partir do momento que a gente compreende que nós mulheres, nossos corpos, foram sendo adotados e tidos como territórios privados dos homens, a gente consegue perceber essa relação e balançar as correntes que nos aprisionam… Por isso, incorporar a perspectiva feminista na prática do veganismo é fundamental senão a gente não sai do lugar, diz.
As transformações propostas pela agroecologia e pelo veganismo precisam ser trazidas para a prática. Romper com esse modelo de sociedade homofóbica, racista, machista e especista é muito difícil, mas a sinergia e o apoio mútuo de ambas as lutas, a partir de suas dinâmicas, podem aos poucos estremecer essas estruturas. “Ambos os movimentos precisam se apoiar, desde que essa convergência esteja pautada nas dimensões da vida em sociedade, no respeito à natureza, no cuidado com a terra, com a água, na não violência, e por questões fundamentalmente políticas que hoje estruturam a sociedade”, finaliza a pesquisadora.
*Luciana Rios é comunicadora e coordenadora na organização da sociedade civil SASOP e integra a coletiva de comunicação e cultura da ANA (Articulação Nacional de Agroecologia)