Veganismo gordofóbico e a cultura da dieta
O que é a gordofobia?
Não é incomum que na promoção do veganismo se faça da saúde, e da magreza enquanto seu sinónimo inquestionado, um argumento. Mas… o que há por detrás da associação entre veganismo e magreza? Não estaremos a combater uma violência reproduzindo outro tipo de violência?
Comecemos pelo princípio: o que é a gordofobia? Podemos definir a gordofobia como qualquer expressão de repúdio face aos corpos gordos ou à mera ideia de gordura. Este repúdio pode expressar-se em relação a outros corpos ou em relação ao próprio corpo. A gordofobia manifesta-se na forma de estigma e juízos de valor sobre as corporalidades gordas, sobre as quais se assumem certas características como a incapacidade para o exercício físico, a falta de higiene, o sedentarismo, a doença, a ausência de sexualidade ou desejo e, inclusive, de simpatia.
Os corpos gordos ocupam na nossa sociedade um espaço de tensão, sendo a gordura desvalorizada como uma forma incómoda e indevida de habitar o corpo. O corpo gordo por si mesmo não é aceite excepto se potencialmente puder ser transformado num corpo magro (isto é, num corpo potencialmente são, belo, desejável, aceitável…).
De forma semelhante ao regime heterossexual, que assume a heterossexualidade como forma de relação obrigatória, existe na nossa sociedade uma estrutura de poder que se impõe sobre os corpos na forma de um ideal corporal magro; pelo que quem contraria a imposição de magreza é castigadx e excluídx socialmente. Um exemplo disto é a acessibilidade limitada de certos espaços que não estão preparados para as corporalidades gordas ou, frequentemente, no âmbito laboral, o vedar do acesso a trabalhos que envolvam atendimento presencial ao público.
A relação gordura–doença encerra uma lógica de patologização dos corpos que justifica a intromissão social nas corporalidades dissidentes, convertendo-as num lugar público sobre o qual qualquer umx é livre de opinar. Os corpos gordos são lidos como corpos doentes que “devem ser salvos”, negando-se desta forma a sua autonomia e limitando-os violentamente. O “conselho” (que ninguém pediu) é uma forma de exercer violência, de castigar e de reprimir todo o corpo que não seja magro e de lhe impor deveres e propósitos. Assim, a associação da saúde e da beleza ao corpo magro constitui um mecanismo de (auto)controlo e de (auto)repressão dos corpos promovido pelo modelo hegemónico da magreza. Esta obrigação de se ser magra está em estreita ligação com as prescrições de género heteropatriarcais. A cultura da magreza obrigatória tem repercussões sociais de violência corporal: os transtornos alimentares são dos principais problemas das sociedades capitalistas ocidentais; o controlo da massa e do peso e as dietas têm consequências na forma como as pessoas vivem e habitam os seus corpos e, a partir dessa vivência, na maneira como se relacionam com o ambiente e com xs outrxs.
A gordofobia, como expressão de domínio capitalista, controla os nossos pensamentos e apropria-se do imaginário social, gerando tipos de violência que exercemos ou recebemos sobre os nossos corpos e que projectamos sobre os corpos dxs outrxs. Este mecanismo de controlo é tão forte que mesmo apesar de sabermos da sua existência, militarmos contra ele e desejarmos com todas as nossas forças que desapareça, não deixamos de o sentir e praticar; e, mais, não se circunscreve apenas aos sectores mais consumistas, também é reproduzido por entre os sectores mais politizados e insurgentes da sociedade. Assim, cria-se a imagem e destrói-se o corpo; somos círculos num mundo onde se querem apenas rectângulos – e aguenta-o! Se podes…Se não, aqui está a tua dieta!
Veganismo = dieta?
Nos últimos anos, durante os quais se popularizou o termo, o veganismo foi definido frequentemente como uma dieta que exclui ingredientes de origem animal (lacticínios, carnes, peixe, marisco, ovos, mel), desconsiderando-se outras implicações políticas que esta prática implica.
Se nos reportarmos à origem do conceito, é deveras redutor explicar o veganismo como uma dieta, já que o seu verdadeiro intuito é o de colocar em prática os valores anti-especistas: a rejeição da dominação e exploração de animais não-humanxs. O veganismo não se limita portanto à alimentação, implicando também transformações no consumo que fazemos de produtos testados em animais, de vestuário e peles, de espectáculos onde se manuseiam e exploram animais não-humanxs, etc. Em última instância, o veganismo implica toda uma reflexão crítica (visando a aplicação prática) sobre as formas de relacionamento entre animais humanxs e não-humanxs.
Mas, regressando ao tema que nos diz respeito, é certo que existe uma parte do veganismo que conduz a uma modificação da dieta ou dos alimentos consumidos por parte de quem o adopta, e esta modificação passa precisamente pela restrição do consumo de produtos alimentares de origem animal. Não obstante, a causa desta restrição não está relacionada com a cultura da dieta mas sim com a recusa em considerar xs demais animais não-humanxs como produtos, deixando de xs consumir para contrariar activamente o especismo.
O problema surge quando ao tentarmos angariar mais pessoas para o veganismo, como se de uma campanha publicitária se tratasse, fazemos uso de associações problemáticas que são inclusive usadas pelo Sistema contra nós, associações que não são neutras e que, pelo contrário, correspondem a uma lógica de dominação corporal e de género.
A cultura da dieta consiste na popularização e normalização da dieta enquanto mecanismo de controlo corporal. O tipo de dieta que se promove desde esta óptica magro-cêntrica e patriarcal tem por fim a perda de peso ou a redução da massa corporal e realiza-se através da restrição alimentar (frequentemente combinada com desportos específicos para queimar calorias e gordura ou ainda com o consumo de diversos produtos diuréticos ou medicinais).
Não se pode compreender a cultura da dieta sem se ter em conta o contexto de capitalismo de consumo em que vivemos e que é um sistema que te vende (impõe) alimentos transgénicos e comida rápida, por um lado, e que por outro te oferece cremes e comprimidos para emagrecer, dietas, gamas inteiras de alimentos light, operações cirúrgicas como a liposucção ou a redução de estômago, etc.
Esta lógica perversa tem um fim concreto: exercer controlo sobre os corpos para que se enformem de determinada maneira (de acordo com o padrão hegemónico: magros, “belos”, femininos, brancos, heterossexuais…) e com isso se mantenha o benefício económico gerado por todo este consumo. As grandes farmacêuticas, as cadeias dietéticas e os centros estéticos são, pois, quem mais lucra com esta lógica.
A cultura da dieta tem repercussões nefastas sobre os corpos, fazendo-nos crer que podemos adaptarnos a um só modelo corporal (que na realidade é inalcançável, na maioria dos casos) e obrigando-nos a exercer violência contra nós mesmxs e xs outrxs para atingir esse objectivo.
Voltando à crítica da gordofobia, reduzir o potencial ético e político do veganismo (que é originalmente uma posição de justiça social) convertendo-o numa mera dieta, mais light e saudável, poderá até trazer benefícios para xs demais animais a curto prazo (algo que mesmo assim é bastante questionável) mas, por outro lado, perpetua inevitavelmente uma série de violências corporais.
Centrar o veganismo na saúde faz-nos esquecer das verdadeiras víctimas do especismo: xs animais nãohumanxs. Tudo aquilo que o veganismo nos traz de positivo para a saúde são benefícios colaterais que advêm de um propósito não antropocêntrico e que é, afinal, o de outorgar valor à vida e ao corpo dxs animais nãohumanxs. “Vender” o veganismo como uma dieta adelgaçante afasta-nos da libertação animal e coloca-nos numa posição de cumplicidade para com a gordofobia e a cultura da dieta.
Porque é que é assim tão difícil entender que existem pessoas gordas veganas? Porque uma vez mais se presume a magreza obrigatória nxs veganxs. Os corpos veganos são e sempre foram diversos. Infelizmente o veganismo tem vindo a ser há já demasiado tempo associado à magreza e saúde, mas não nos esqueçamos igualmente de que também é frequente, e nada abonatória, aquela ideia da pessoa vegana como anémica e carente de proteínas.
Talvez a chave esteja em reconhecermos a diversidade corporal, de tamanhos e de estaturas, também entre xs veganxs, e sermos críticxs com os sistemas de dominação que possamos indevidamente reproduzir nos nossos esforços de promoção de respeito pela dignidade das vidas animais.
Capitalismo, veganismo, género e o negócio das dietas
O capitalismo apropria-se das dietas enquanto mecanismos de controlo que geram dinheiro; todas as dietas são escrutinadas, concebidas e impostas sem que nenhum aspecto lhe escape.
Se estás gorda, tens uma dieta restritiva à tua espera que te vai dizer como deves ser e o que fazer (usar cremes, faixas, ginásios, terapias); se és um bebé ou uma criança, estarás à mercê de um Nutricionismo que congemina prescrições para todas as idades, e não tens saída porque as tuas mães, os colégios e os teus pediatras agarram-se a ele, desesperadamente, e a manuais que não oferecem nenhum tipo de explicação sobre o próprio conteúdo ou sobre a empresa que o subvenciona. Se és adultx, vês-te perdidx à mesma num mundo sem alternativas, ou então estas são-te tão custosas que não há tempo ou esforço que valham; rendeste porque o supermercado está já ali, tem de tudo e nunca fecha (graças a humanxs escravizadxs) e ainda te sai mais barato levar 5 do que 1, por isso podes ficar a semana toda a comer fast-food. As alternativas podem surgir mas são logo apropriadas pelo capitalismo, e assim acabas por comer o que te mandam; para sair disto a única opção é lutar pela comida, pelos bens essenciais que ingeres várias vezes ao dia, tens ainda de ter mais força para politizar a tua maneira de comer e para lutar também através da maneira como te alimentas.
E onde é que está o veganismo no meio disto tudo? Ora, está em todo o lado, porque a certa altura o veganismo e os diversos mecanismos de opressão acabaram por se fundir. Se és vegana, os teus pais, os teus vizinhos, os empregados dos bares pensam que estás em dieta, que te preocupas com a tua linha (mesmo que nem sequer saibas onde está essa linha de que todos falam), porque “vegana e gorda? Isso é impossível! Estás a gozar!”, e assim já não só exercem violência sobre o teu corpo como também menosprezam a tua capacidade política e o teu interesse nela, porque afinal o que te devia interessar é emagrecer e ter vestidos… E quando pensas que entre veganxs estás a salvo, encontras pessoas que se intitulam veganxs porque associam o veganismo a uma dieta e o que realmente procuram é a magreza e a saúde; e, assim, a estrutura política e ética que construíste com as tuas próprias mãos, com as tuas unhas, é invisibilizada e carcomida, o discurso e o conteúdo desaparecem. E, depois, o capitalismo imiscui-se e as empresas que enriquecem escravizando animais, que fomentam o seu consumo e exploração, lavam a cara e apropriam-se do veganismo, convertem-no numa moda e criam produtos elitistas que chamam de “veganos” e assim controlam, inexoravelmente, o dinheiro e o poder.
Infelizmente isto não termina aqui: aparecem veganxs com um discurso político que utiliza a gordofobia e outras formas de opressão para promover o veganismo. E quando já estás quase a explodir aparecem feministas que te acusam de fomentares uma dieta restritiva – e não adianta que tenhas a garganta a sangrar ou o esterno partido de tanto gritares que isso não é o veganismo, simplesmente marimbam-se nas tuas palavras.
Na realidade, onde é que está o veganismo no meio disto tudo?! Em lado nenhum. O veganismo é uma posição, uma luta política e ética segundo a qual se renuncia à exploração, à clausura e à escravatura dxs animais, humanxs ou não-humanxs. A alimentação é apenas uma das suas implicações, mas é-o de acordo com a recusa em participar na instrumentalização dxs animais enquanto produtos ou escravxs. Não tem nada, nada, nada a ver com a silhueta desta ou daquela, tem sim, a ver com a empatia e a solidariedade para com xs oprimidxs.
Porque nos saciamos com este discurso e conteúdo, e porque veganxs somos nós e não os alimentos (sobretudo aqueles produzidos pelo capitalismo), dizemos-te que para deixares de consumir e explorar animais não precisas que uma empresa te crie um produto, a Terra já tos fornece.
Atenta: somos veganxs porque não queremos contribuir para a exploração dxs indivíduxs; a gordofobia só nos interessa porque a queremos abolir; os adoradores da magreza como cânone único não estão connosco nem são bem-vindos; existem já demasiadas modas, e todos estes mecanismos e estruturas criados pelo capitalismo dão-nos asco!
Contra todo o tipo de opressão corporal
A opressão especista a que xs animais não-humanxs são sistematicamente sujeitxs pode entender-se também como uma opressão que está ancorada numa corporalidade concreta: a não-humana. Historicamente, o não-humano, o feminino e todxs aquelxs que saem do padrão de beleza vigente foram associadxs à degradação e marginalizadxs, constituindo “aquelxs que não merecem respeito”.
A presente proposta coloca o corpo como foco central, como o lugar onde se manifesta essa opressão e em torno do qual se exerce esse poder que queremos rejeitar. Enquanto veganas conscientes das opressões de género e das problemáticas relativas à corporalidade, sentimos a necessidade de fazer esta auto-crítica porque acreditamos que nem tudo vale na difusão do veganismo. Nestes tempos de capitalismo feroz, o corpo é a nossa toca, o nosso espaço no Mundo. Não será melhor gerar alianças entre vacas, baleias, morsas, elefantas e humanas? Aproximemo-nos mais umas das outras, diversas, cada dia um pouco mais felizes com os nossos corpos, e sobretudo não façamos a papinha aos Poderes que nos separam e nos põem a competir! Porque para muitas de nós a libertação animal é ampliar a gama dos corpos que merecem respeito, não aceitamos a discriminação nem por peso, nem por estatura, nem por espécie
Tradução para português por Rata Dentata – facebook.com/ratadentata
Artigo traduzido de JAUNIA 1 – https://jauriazine.wordpress.com/descarga/