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Animais ou pessoas: o falso dilema do feminismo

Animais ou pessoas: o falso dilema do feminismo

de Catia Faria (tradução de Fabio A G Oliveira)

“Uma companheira pergunta por que parte do feminismo está mais preocupada com os animais do que com pessoas que estão sendo mortas em outros territórios”. Catia Faria responde a este tweet sobre o debate antiespecista nas Jornadas Feministas em Euskal Herria (País Vasco).

Ilustração: Ana Lorente, Tijeras e Poemas. Inicialmente feito para o artigo ‘O silêncio das putas. A estrutura política da misoginia no antiespecismo “

Recentemente, durante a V Jornada Feminista no Euskal Herria (País Vasco), um tweet da Pikara Magazine incendiou, de novo, as redes sociais. Ele dizia: “Uma companheira se perguntou por que parte do feminismo está mais preocupada com os animais do que com pessoas que estão sendo assassinadas em outros territórios”. * Devo admitir que, ao ler o tweet, soltei um profundo suspiro de tristeza. Não apenas por causa do tweet em si, mas por prever as reações que se seguiriam e seriam contrárias a ele. Há algum tempo que espero que as redes incorporem algum mecanismo de sinalização de falácias deste tipo, em luz neon intermitente, que nos permitiria descartar, sem muita preocupação, os múltiplos enganos do raciocínio. Mas faz algum tempo que também me tornei cética acerca dos processos que fazem confluir equivocadamente conflitos normativos com ameaças, que justificam, portanto, o contra-ataque e frequentemente a crueldade contra nosses interlocutores. Um exemplo disso são as ‘porradas’ inaceitáveis ​​(vale ya, joder) que nosses camarades de Pikara receberam por ousarem discutir todo o espectro do debate sobre prostituição nessa mesma Jornada. Pelo o que pude compreender, e subscrevendo as palavras da Laboria Cuboniks, o ativismo feminista deveria orquestrar “não uma orgia autofágica de indignidade e fúria, mas uma comunidade emancipatória e igualitária sustentada por novas formas de solidariedade não egoísta“. Com essa ideia em mente, portanto, escrevo este texto.

O falso dilema

O tweet em questão, como tantos outros raciocínios expressos na linguagem cotidiana, suprime uma das premissas em que se baseia. Em particular, a ideia de que: se você é feminista ou você se preocupa com os animais ou com as pessoas assassinadas em outros territórios. Somente a partir disso é possível inferir logicamente que se você se preocupa com animais, então não se preocupa com pessoas assassinadas em outros territórios. Mas, dessa maneira, se oculta uma falácia. Ou seja, um argumento incorreto com a “aparência” de não ser. Nesse caso, um falso dilema.

Um falso dilema ocorre quando uma situação se apresenta com apenas duas possibilidades mutuamente excludentes, quando, na verdade, existe pelo menos uma terceira opção. O tweet mencionado contém um falso dilema, pois não é verdade que sendo feminista só exista a opção de se preocupar com animais ou a opção de se preocupar com pessoas assassinadas em outros territórios. Existe também, entre outras opções, a de se preocupar com animais e pessoas assassinadas em outros territórios. Esta é, de fato, na minha opinião, a única opção eticamente razoável e para a qual muites trabalham firmemente.

A prioridade humana

Outra técnica retórica usada neste tweet é o que se conhece como redução ao absurdo. Trata-se de assumir como ponto de partida algo verdadeiro – que devemos nos preocupar mais com as pessoas do que com os animais – e mostrar que o contrário – que algumas pessoas se importam mais ou igualmente com os animais do que com as pessoas – é absurdo. Existem vários problemas aqui. Primeiramente, não é óbvio, pelo menos não sem argumentos, que devemos nos preocupar mais com as pessoas do que com os animais. Há circunstâncias em que se preocupar mais com as pessoas pode ser justificado e outras em que o mais ético será se preocupar mais com os animais; tudo dependerá da força dos interesses em jogo. Por exemplo, se uma pessoa bate em um cachorro na rua, seu interesse em obter um prazer derivado do abuso de animais não é forte o suficiente para prevalecer sobre o interesse de não sofrer do cachorro. Em tais circunstâncias, seria justificável se preocupar mais com o animal do que com a pessoa. Da mesma forma, o interesse de uma pessoa em desfrutar de um certo prazer gastronômico, perfeitamente substituível, com raras exceções, por alternativas vegetais, não deve ser priorizado sobre o interesse em viver e não sofrer de um animal.

assumir como óbvio que sempre devemos nos preocupar mais com as pessoas do que com os animais é reproduzir acriticamente a supremacia humana sobre as demais espécies.

Em segundo lugar, não se importar com as pessoas não implica necessariamente se preocupar mais com os animais, uma vez que existe a opção de se preocupar com ambos igualmente. De fato, nos exemplos acima, não se trata, estritamente falando, de se preocupar mais com o animal do que com a pessoa, mas de se importar com ambos igualmente como sujeitos dignos de consideração e respeito, que possam sofrer e gozar de suas vidas e, dada uma situação do conflito, se avalie quais são os interesses mais fortes. Isso não deveria surpreender, pois é exatamente assim que procedemos quando há um conflito de interesses entre os seres humanos. Impedir que sua filha empurre sua prima pelas escadas por diversão não significa se preocupar mais com sua sobrinha do que com sua filha, mas se preocupar com as duas e determinar que o interesse de sua filha em se divertir é mais fraco do que o interesse de não sofrer, e potencialmente viver, de sua prima. Assumir como óbvio que devemos sempre nos preocupar mais com pessoas do que com animais é reproduzir acriticamente a supremacia humana sobre outras espécies, seguindo a mesma lógica de outras supremacias que naturalizam as diferenças entre os indivíduos e retratam aqueles que os enfrentam como envolvides em uma batalha absurda contra o “curso natural das coisas”.

Isso explica por que a defesa dos animais é representada como uma ameaça à defesa das pessoas quando, como no caso em questão, não há nem mesmo um conflito entre os interesses dos animais e os interesses das pessoas. Para que isso acontecesse, teria que haver alguma relação causal entre uma coisa e outra, de maneira que estaríamos deixando de nos mobilizar pelas pessoas assassinadas em outros territórios por estarmos destinando atenção aos animais. Evidentemente, esse não é o caso. Aqueles que não se mobilizam pelas pessoas que estão morrendo em outros territórios não se mobilizam porque não se importam com as pessoas que estão morrendo em outros territórios, não se importam o suficiente ou são influenciados por preconceitos de todos os tipos, e não porque se importam os animais.

Finalmente, seria necessário avaliar se, de fato, aquele setor do feminismo ao qual o tweet se refere realmente se importa mais ou igualmente com animais do que com as pessoas, e não menos, ainda que se preocupe em algum nível. Não tenho dados, mas é minha forte convicção, depois de anos de ativismo, que, dadas as raízes profundas do especismo na esfera individual, social e institucional, continuamos, apesar dos esforços, irremediavelmente especistas, remanescentes, em geral, impassíveis diante da magnitude do massacre perpetrado contra os demais animais. O que acontece em um certo setor do feminismo, esse pequeno espaço ocupado por feministas antiespecistas, é que nos importamos com os animais. E, ao fazê-lo, em um mundo marcado pela mais profunda objetificação e desconsideração pelo bem-estar de outras criaturas, nos confrontamos com um status quo opressivo e discriminatório, que nos situa desproporcionalmente no foco. Inclusive, vamos admitir, dentro do feminismo.

O feminismo antiespecista se preocupa igual ou talvez até menos com os animais do que com as pessoas

Uma vez evidente que o feminismo antiespecista se preocupa igualmente ou talvez até menos com os animais do que com as pessoas, torna-se compatível, por razões estratégicas, dedicar esforços para a defesa dos animais. Existem três razões fundamentais para realizar esse esforço: a escala e a gravidade dos danos em jogo e, sobretudo, a negligência do problema. Estima-se que cerca de dois bilhões de animais sejam criados, confinados, torturados e abatidos a cada ano para fins de bens e serviços de origem animal (FAO, 2019). Diante desse fato, a grande maioria do ativismo permanece direcionada à defesa dos interesses dos seres humanos. Mesmo dentro do ativismo “animalista”, apenas uma pequena parte investe seus esforços em animais explorados, apesar de serem a grande maioria dos animais mortos e usados ​​para o benefício humano. Assim, dada a escassez de recursos investidos no ativismo em defesa de animais e a magnitude do sofrimento e da morte em questão, mesmo se nos importamos menos com os animais do que com as pessoas, mesmo se nos importamos muito menos, existem fortes razões para dedicarmos esforços para melhorar a condição dos mesmos.

O vínculo entre a violência interpessoal e a violência interespécies

É sabido que o envolvimento na exploração de animais prejudica não apenas os animais, mas também os seres humanos, especialmente os mais vulneráveis. Além disso, vários estudos sugerem a existência de uma conexão mais ampla e direta entre a violência entre seres humanos e outros animais. Por exemplo, há algum tempo que a violência infantil contra animais considerados de estimação tem sido identificada como um forte indicador da conduta criminosa de adultos. Também é conhecida a correlação entre violência de gênero e abuso de animais, onde a violência, seja na forma de ameaça ou na sua concretização, é usada como um mecanismo eficaz de dominação e controle de mulheres e crianças. Vários estudos também têm apresentado que uma alta porcentagem de mulheres de diferentes origens socioeconômicas vítimas de abuso sofreram maus tratos de animais de estimação a mando de seus parceiros. No campo da psicologia, foi recentemente demonstrada a existência de um forte vínculo entre atitudes especistas e outras formas de preconceito, como racismo, sexismo e homofobia. Da mesma forma, se identificou que o especismo não somente acompanha outras atitudes discriminatórias, mas se constitui enquanto uma instância de um modelo mais amplo de preconceito, que permite prever sobre quem se incide uma maior probabilidade de desumanização de outros grupos humanos marginalizados. Outros estudos sobre percepções sociais sugerem que, de fato, as pessoas geralmente parecem intuitivamente conscientes da conexão entre especismo e formas “tradicionais” de discriminação, inferindo traços de personalidade semelhantes entre uma pessoa especista e uma pessoa racista, sexista ou homofóbica. Por que isso é relevante? Porque, mesmo que não tivéssemos motivos para rejeitar a violência infligida a outros animais com base em seus interesses fundamentais, os dados sugerem que um verdadeiro compromisso com a não-violência na esfera humana necessariamente leva, embora indiretamente, a defender ainda mais a não-violência para além de nossa espécie.

deveríamos promover, enquanto feministas, uma maior solidariedade entre espécies

Solidariedade não-egoísta

Para o ativismo antiespecista o que foi dito anteriormente não é uma novidade, evidentemente, uma vez que somos conscientes de que a defesa dos animais não limita nossa consideração e o respeito aos animais, a negando às pessoas, mas amplia sua consistência, a consideração e o respeito para todos os seres que não desejam sofrer, mas viver e desfrutar de suas vidas, incluindo os seres humanos. Portanto, em vez de enfatizar supostas diferenças entre “animais e pessoas”, legitimando falsos dilemas a serviço de arranjos sociais supremacistas que prejudicam a todos nós, devemos promover, como feministas, uma maior solidariedade entre as espécies e advogar por um mundo mais compassivo e justo para todos os seres sencientes. Além disso, não vamos esquecer, entre nós.

Catia Faria – Filósofa y activista. Dos palabras que no suelen ir juntas. Feminismo y antiespecismo.

* Nota da autora: Usarei a expressão “animais e pessoas” para seguir a mesma linha lingüística do tweet, embora a própria dicotomia entre animais e pessoas seja questionável do ponto de vista especista. Deixarei a questão pendente por razões de espaço para futuras reflexões.

* Nota do autor: O texto original, em língua espanhola, apresenta diversas passagens com a utilização da linguagem não violenta, utilizando o “e” para designar a neutralidade do sujeito da ação. Durante o processo de tradução foi mantida a estrutura argumentativa das sentenças, o que fez com que uma passagem em especial se tornasse difícil de traduzir para a linguagem não-violenta. Após contato com a autora, optou-se pela utilização o pronome feminino no instante do texto em que “su prime” foi traduzido por “sua prima”.

1. O artigo original foi publicado sob o título “Animales o personas: el falso dilema del feminismo“, em https://www.pikaramagazine.com/2019/12/animales-o-personas-el-falso-dilema-del-feminismo/?fbclid=IwAR3xiYac02FSDckQkFqfKIGDiMABr1GEl1im1ZUzds-4KkkEwZ0VJJ5e1G8

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